Insuficiência adrenal, costeletas e a palavrinha mágica.

Tudo começou há um tempo atrás (precisamente 156 anos), na Ilha do Sol (leia-se Inglaterra).

Thomas Addison foi esse senhor aí, portador de belíssimas e invejáveis costeletas. Em 1855, enquanto nosso país decidia se largava ou não a escravidão, nosso camarada descrevia, no auge de seus 62 anos, um quadro clínico característico de insuficiência das glândulas suprarrenais, situação que se tornou conhecida como Doença de Addison. Cinco anos mais tarde, Addison decidiu que não queria mais lidar com seus desgostos de viver e pôs o fim a uma vida dedicada à pesquisa e à docência na Medicina, pulando do alto de seu apartamento e mergulhando de cabeça numa piscina de concreto.

Belas costeletas nunca saem de moda.

Ok, agora engole esse choro e presta atenção que a gente vai conversar sobre a Doença de Addison, causada basicamente porque as glândulas suprarrenais estão funcionando pouco, ou não estão funcionando.

Vamos começar aprendendo um negócio: existe a insuficiência adrenal primária e a secundária. Para aprender a diferenciar, primeiro você tem que saber isso aqui:

  1. A gente sabe que as suprarrenais funcionam a partir das ordens de um hormônio chamado adrenocorticotrófico, ou simplesmente ACTH.
  2. Quem produz esse hormônio é uma parte do nosso cérebro, a hipófise, a partir das ordens de uma outra parte, o hipotálamo, constituindo uma dupla carinhosamente chamada de eixo hipotalâmico-hipofisário, que controla mais um monte de outros hormônio e outras glândulas.
  3. Sendo assim, o nosso eixo aqui é o eixo hipotalâmico-hipofisário-adrenal, porque estamos estudando a influência dessa dupla sobre as suprarrenais, sacou?

Beleza pura então. Agora vamos nessa:

A insuficiência primária se caracteriza justamente pela disfunção específica das glândulas adrenais. Ou seja, o eixo hipotalâmico-hipofisário-adrenal tá mandando ACTH pro sangue, fato que pras suprarrenais deveria funcionar como um recadinho escrito “vá trabalhar, suas quengas”. Mas não. As glândulas simplesmente ignoram a presença desse hormônio e não trabalham nem com a muléstia.

Já a insuficiência secundária acontece a partir de um defeito no eixo hipotalâmico-hipofisário-adrenal, que não produz ACTH suficientemente. Ou seja, as glândulas suprarrenais estão lá, tomando uma água-de-côco, comendo um camarãozinho, fuçando o facebook delas, já que ninguém as manda trabalhar.

Até aí, beleza né?

Agora vamos falar de algumas das causas. Essa parte vai ser um pouco mais técnica e sucinta, porque se eu for explicar com detalhes tudo de cada causa, gastaria bem uma vida pra cada uma delas, e infelizmente eu só tenho sete, digo, uma. Então se prepare, aumente seu som e não durma, por favor.

Causa genética

Uma causa genética bem comum em crianças é a hiperplasia adrenal congênita, doença autossômica recessiva, causada por uma deficiência enzimática na síntese do cortisol. Outros fatores genéticos menos notados também são responsáveis, entre eles a insensibilidade ao ACTH e defeitos da biossíntese do colesterol, que serve como precursor dos corticóides endógenos. É importante lembrar também da adrenoleucodistrofia e da adrenomieloneuropatia, causas um tanto raras de Doença de Addison.

Causa auto-imune

Essa é mais interessante. É detectada facilmente em um exame histopatológico, ou até mesmo pela presença de auto-anticorpos no sangue, principalmente dois deles, que servem como marcadores dessa etiologia específica: os auto-anticorpos anti-córtex adrenal e os auto-anticorpos anti 21-hidroxilase, uma enzima importante da síntese de glicocorticóides. Esses anticorpos marcam pra morrer as células do córtex adrenal, chamando um infiltrado de células do sistema imune pra glândula, gerando um aspecto diferente do órgão num exame de imagem, uma perda da arquitetura padrão da suprarrenal. A morte celular na adrenal permite o fibrosamento nos nódulos celulares, até que sobre, de funcional, somente a medula. Tá achando triste? O pior é que 40% desses casos vêm com um pacote completo de doenças auto-imunes endócrinas, caracterizando uma síndrome poliglandular autoimune, objeto de extenso estudo da área da Endocrinologia. Só de curiosidade: entre as doenças incluídas nessa síndrome, estão algumas popstars, como diabetes tipo 1, tireóide de Hashimoto, hepatite crônica e esclerose múltipla.

Infecções

Isso mesmo, infecções! Tem uma infecção que é famosa por ser causadora da Doença de Addison, que é a paracoccidioidomicose (eu sei que você parou de ler a palavra no meio, rapá, tá pensando que eu nasci ontem? Volta e relê. Agora.). Sabe-se que 5 a 10 porcento dos casos dessa infecção fúngica sistêmica têm insuficiência adrenal como patologia secundária. A própria tuberculose também é a causa de 17 a 20 porcento dos casos de Addison. O trofismo da infecção para a nossa querida glândula se dá justamente, vejam só, por causa do acúmulo de glicocorticóides no órgão, o que diminui drasticamente sua atividade imunológica.

Pasmem, garotada: AIDS também pode causar um quadro de insuficiência adrenal a partir da facilitação de infecções oportunistas como citomegalovirus, algumas bactérias e protozoários. Pra você ter uma idéia, 18% dos pacientes com AIDS apresentam considerável hipofunção do córtex adrenal.

Câncer

Não necessariamente na própria glândula, veja bem. Setenta porcento dos casos de câncer maligno de pulmão e mama contam com infiltração neoplásica para as adrenais. Outras metástases, como cânceres no rim, cólon ou estômago também podem gerar complicações nas suprarrenais, ainda que sejam casos menos comuns. Carcinomas hipofisários também têm potencial de desregular o eixo hipotalâmico-hipofisário-adrenal, juntando ao quadro outros distúrbios em secreções hormonais controladas pelo mesmo mecanismo.

Os mecanismos pelos quais os diversos tipos de insuficiência adrenal se estabelecem são bem complexos e estão explicados aqui de maneira bem breve e resumida, ok? Para cada um deles é possível achar vários artigos.

Agora, com vocês, uma parte mais legal do post: os sintomas e achados clínicos!

Sintomas gerais

Uma dificuldade clínica é justamente esse diagnóstico. Os sintomas são bem inespecíficos, incluindo mal-estar, fraqueza, falta de apetite, perda de peso, queixas gastro-intestinais como vômitos, diarréias e dores abdominais. A falta de mineralocorticóides pode vir a causar hipotensão, desmaios ou tontura, desidratação ou até choque cardiocirculatório.

O ACTH sanguíneo, a pigmentação cutânea e a insuficiência adrenal primária.

Agora pensa comigo: nos casos de insuficiência adrenal primária é natural que a ordem do eixo hipotalâmico seja dada com mais rigidez, não é? É tipo quando seu patrão grita com você pra ver se você faz logo o serviço. É justamente o que acontece: os níveis de ACTH no sangue são maiores que os valores de referência, denotando uma preguicinha do córtex adrenal, clinicamente chamada de resistência hormonal. Só que o ACTH é um hormônio que aumenta, indiretamente, a atividade dos melanócitos. É isso mesmo que você tá pensando, pode falar no microfone, meu garoto: a manutenção de um alto nível sérico de ACTH causa hiperpigmentação cutânea. Meus parabéns. Esse é um achado semiológico importantíssimo para excluir um caso de insuficiência secundária, causada por disfunção hipofisária. Curtiu né? Eu também.

O exame de sangue do camarada

Se você suspeita de Addison, não é surpresa nenhuma encontrar:

  • Níveis inferiores de cortisol basal
  • Níveis superiores de ACTH (caso seja insuficiência primária)
  • Hiponatremia (pouco sódio, já que a produção de aldosterona seria insuficiente)
  • Hipercalemia (muito potássio, porque a aldosterona, que promove a excreção de desse mineral, tá em falta)
  • Hipoglicemia (gerada pela falta do cortisol no organismo)

O teste do ACTH exógeno, a técnica da “palavrinha mágica”.

É bem aquele caso em que você fala pra alguém fazer algo e a pessoa não faz. Um método eficaz é o uso da palavrinha mágica. Acontece assim: seu chefe diz “Eduardo, já terminou o relatório que eu pedi de manhã?” O Edu manda “Ainda não, mas to terminando”. A situação se repete mais umas duas vezes durante o expediente, até que, no final, o chefe perde a paciência e mete a palavra mágica: “Eduardo, são 17:40 e você ainda não terminou esse relatório, porra?”. Edu finaliza o documento nos próximos 2 minutos. É a mesma ordem de antes, só que reforçada com uma dose extra de autoridade.

Agora, pensa que se o ACTH, que é a ordem da hipófise pra adrenal, não tá dando conta do recado, você pode engrossar o caldo e dar sua “palavrinha mágica” bioquímica, que é esse procedimento. O teste consiste na administração endovenosa de uma dose suprafisiológica (leia-se cavalar) de ACTH exógeno, na forma de um medicamento chamado Synacten. Ao administrar o hormônio, espera-se que o córtex da suprarrenal responda ao comando exercendo sua função, ou seja, produzindo, principalmente, glicocorticóides. Sendo assim, espera-se um aumento significativo nos níveis séricos de cortisol, justamente por causa dessa ordem reforçada. Se você tacou ACTH e a adrenal respondeu com um aumento tímido, quase nada, aí pronto, já sabe de quem é a culpa. Só pode ser do empregado preguiçoso, ou seja, da suprarrenal que não responde às ordens hormonais, caracterizando insuficiência adrenal primária.

E se fosse insuficiência secundária?

Aí, meu caro mancebo, o negócio é um pouco diferente. Diferente, mas não difícil.

Primeiro de tudo: a insuficiência adrenal secundária é mais rara. E é bem normal, como eu diss

e ali em cima, vir acompanhada de outras disfunções que problemas do eixo hipotalâmico-hipofisário podem trazer. Pra confirmar de vez, tem um teste supimpa que consiste em induzir a hipoglicemia no paciente, a partir de uma injeção de insulina. O que a gente espera é que diminuição da taxa de açúcar no sangue estimule o eixo hipotalâmico a secretar ACTH, ordenando as suprarrenais a secretarem cortisol, que vai aumentar a glicemia, corrigindo o efeito da insulina exógena. Se o procedimento retornou um resultado diferente disso, você não verificou nenhum foco de hiperpigmentação cutânea e confirmou uma taxa baixa de ACTH no sangue, pronto, pode crer que a causa da doença é secundária.

O tratamento

Sinto lhes dizer, mas isso aqui é que nem House, o seriado. O brother sofre, sofre até não poder mais, expõe todos os podres de sua vida, e depois sofre mais um pouco, pra no final tomar um remedinho de nada, um comprimidinho à toa e viver normalmente como se nada tivesse acontecido.

O tratamento pra isso tudo aí que a gente tá conversando é apenas a reposição hormonal, pura e simples. Se tá faltando é cortisol, basta tomar hidrocortisona, prednisona, prednisolona ou algum outro glicocorticóide. O tratamento é associado, claro, com reposição de um mineralocorticóide também.

Os amiguinhos portadores de Doença de Addison devem carregar sempre consigo uma identificação dessa doença, de modo que, em caso de tratamentos ou emergências clínicas, a patologia possa ser facilmente reconhecida e crises de disfunção das adrenais possam ser devidamente prevenidas.

Fontes:

Insuficiência adrenal primária no adulto: 150 anos depois de Addison

Insuficiência adrenal crônica e aguda

4 pensamentos sobre “Insuficiência adrenal, costeletas e a palavrinha mágica.

  1. Mari Mergulhão disse:

    Caraca!
    Me senti no House! Que orgulho deste meu amigo! =D

  2. Cristina disse:

    Rapaz, essa tua tirada sobre o nome da infeccao foi ooooootima… Eu realmente havia parado no meio da palavra….kkkkkkkk. Mas tb, paracoccidioidomicose, ninguem merece!

  3. muito boa a sua explicação! estou lendo sobre esta doença a meses e ainda não tinha entendido muita coisa. Bem didático.

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